Cosmo Braz de Lemos
Uma tensão frutífera entre a oralidade e escritura; palavra e imagem. Por isso, Cosmo considera que essa arte guarda em si o sentido da vida: “Eu vivo da xilogravura e ela me vive”.
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Sobre as criações
O prazer, a sabedoria do ver, chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade inextinguível pelas formas me assaltava e assalta sempre. Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida.
(Murilo Mendes, 2003)
A xilogravura foi uma das primeiras formas de reprodução imagética, a fotografia foi considerada um avanço tecnológico, por sua capacidade sua reprodutibilidade e por sua reprodução da realidade. Na contramão, a xilogravura por meio do alto e baixo relevo permitem o toque, o acesso e uma compreensão mais alargada da realidade. Por meio da poesia talhada e tradução silenciosa da literatura. Uma tensão frutífera entre a oralidade e escritura; palavra e imagem. Por isso, Cosmo considera que essa arte guarda em si o sentido da vida: “Eu vivo da xilogravura e ela me vive”.


Na assinatura de Cosmo emergem seus encontros ao longo da trajetória, o encantamento pela cultura do Cariri e as artes gráficas narrativas: cordel; cartoons; caricatura; charges. Essa amálgama é sintetizada no tema de suas obras: sempre o Cariri e os seus traços, unindo a leveza gráfica dessas referências ao traço rústico e à densidade expressiva dos relevos texturizados da xilo. Cosmo acredita que a xilogravura tanto transmite quanto preserva a história de Juazeiro, ao narrá-la. Isso se dá por meio dos mitos e lendas presentes na poesia popular. A capa de um cordel, ilustrada com a gravura, representa visualmente o conteúdo do miolo, e esses dois elementos, ao se encontrarem com um terceiro — o leitor —, formam uma simbiose que perpetua a cultura da região
Por esse motivo, tem se dedicado intensamente as exposições e as oficinas. A transmissão de seus saberes é passível de observação. Ele relata, por exemplo, como as crianças passam a conhecer as lendas da região através da xilogravura, aprendendo sobre a história e as histórias locais — como a da beata — e fortalecendo, assim, os vínculos com sua cultura.
Ao longo do tempo se aperfeiçoou, no início, utilizava principalmente estiletes; mais tarde, passou a usar com mais frequência as goivas, o que possibilitou maior refinamento e precisão — como ele costuma dizer, “o desenho já está quase saindo”. A matéria-prima utilizada é a madeira, especificamente a umburana (também conhecida como amburana ou cumaru-do-ceará). Ela é adequada para a xilogravura pela maciez, corte preciso e resistência ao cupim. Atualmente, devido à escassez e ao preço elevado, ele e o grupo de xilógrafos da região tentam encontrar alternativas para a manutenção da arte, uma vez que o cedro e outros materiais usados são menos macios e adequados do que a umburana.
Nestes 35 anos dedicados à xilogravura, Cosmo conseguiu montar seu próprio atelier e se consolidar no campo artístico de Juazeiro do Norte. Isso lhe permitiu trabalhar exclusivamente com o artesanato, dedicando-se muito às áreas que mais o realizam, as exposições e as oficinas. Atualmente, também começou a produzir porta-celulares — uma iniciativa desenvolvida em parceria com seu filho, que atua com xilogravura e móveis planejados.
Cosmo guarda uma coleção produzida durante a pandemia de COVID-19: são 245 peças de tamanhos variados, nas quais narra — por meio da xilogravura — a história, os mitos e as lendas de Juazeiro do Norte. A série, já aprovada pelo Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (SALIC), ainda aguarda a captação de recursos para ser viabilizada. A obra carrega a influência de Abraão Batista e do território como um todo, elementos profundamente imbricados a trajetória de Cosmo. Ele lembra que nasceu em 1968, um ano antes da construção da estátua de Padre Cícero, marco simbólico que se entrelaça à sua própria história.
Sobre quem cria
“1968 eu nasci, em 1989 eu me identifiquei [com a arte]”, afirma Cosmo.
Não se pode narrar a trajetória de Cosmo sem evocar seu território. Natural de Juazeiro do Norte, cresceu imerso na atmosfera efervescente de uma cidade moldada pela arte e pela fé, sob a sombra mítica de Padre Cícero. Ao responder sobre como começou sua relação com a xilogravura, o artista conta que desenha desde a infância. Foi ainda na escola que teve contato com as obras do mestre Abraão Batista — um entre os muitos xilógrafos e multiartistas da região. O cordel o capturou por sua potência imagética e narrativa. Cosmo fala com entusiasmo sobre a tríade que compõe essa arte: xilógrafo, poeta e leitor — “a capa fala do miolo”, diz.
Esse encontro inaugural o marcou profundamente e o incentivou a seguir estudando pintura de forma autodidata. Em 1984, aos 14 anos, deixou a zona rural rumo à cidade, forçado pela escassez que assolava o país durante o governo Sarney. Na cidade, um de seus primeiros ofícios foi a pintura de letras: tornou-se letrista de fachadas. Também nesse período começou a desenvolver o que viria a se tornar a singularidade de seu traço — produzia charges para jornais da região, como A Notícia, Jornal do Cariri e O Rebate. Inclusive, passou um ano trabalhando numa unidade da FEBEM, após se envolver em um episódio de censura: havia feito uma charge encomendada por um político retratando Ciro Gomes usando palavrões. De quase preso, tornou-se professor de arte: dava aulas duas vezes por semana, ensinando pintura, lápis 6B e papel Canson — já que os instrumentos da xilogravura não podiam entrar na instituição.


Anos depois, em 1989, já como agente administrativo da Prefeitura de Juazeiro, reencontrou os cordéis de Abraão Batista e se reconheceu neles. Também se aproximou das lendas do Rio Grande do Norte, reunidas por Câmara Cascudo, e decidiu se dedicar à xilogravura. “Em 1968 eu nasci, em 1989 eu me identifiquei [com a arte]”, afirma. Foram dez anos de aprofundamento até realizar, em 1999, sua primeira exposição no BNB Cultural: Obras de Misericórdia, com 14 peças. Desde então, são 35 anos vivendo exclusivamente da arte. Casou-se aos 24 anos e um de seus filhos seguiu o mesmo caminho, herdando o ofício.
As exposições e oficinas tornaram-se parte essencial de seu trabalho. Já realizou ao menos dez mostras, entre elas Sombra de Juá – Vida e Morte dos Mestres. Participou também de exposições coletivas em outros estados, como em Fortaleza. O tema que atravessa todas elas é Juazeiro do Norte. Junto a outros artistas, Cosmo realiza um trabalho de pesquisa sobre a história, os mitos, as lendas e o cotidiano da cidade e da região do Cariri como um todo. Como ele mesmo diz: “A exposição pode ser em outros lugares, mas o tema é sempre o Cariri.”
Sobre o território
Território onde arte, fé e resistência se entrelaçam, Juazeiro do Norte está localizada no Cariri cearense. Fundada sobre a mística de um milagre, a cidade recebeu o nome de Juazeiro, árvore frutífera da vegetação predominante na região. Antes da chegada de Padre Cícero, em 1872, era um povoado pertencente ao Crato. O local ganhou relevância política ao ter legiões de fiéis peregrinos que lá chegavam após tomarem conhecimento do suposto milagre ocorrido em 1889, quando a hóstia ministrada à beata Maria de Araújo transformou-se em sangue através das mãos do padre.
Não obstante, Juazeiro é terra de criação em sentido polissêmico, polo econômico, polo educacional e, reconhecidamente, um importante polo de artesanato. Entre ateliers e feiras, o artesanato floresce como forma de expressão e representação. Por meio dos trançados, cordéis, xilogravuras, esculturas e candeeiros, as mãos dos artesãos locais produzem objetos que imiscuem a suas trajetórias e a história de seu território.


























