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O Território
Localizada na região Oriental do Tocantins, a região do Jalapão é composta por 15 municípios e uma área delimitada em 2001 como Parque Estadual do Jalapão, que abrange os municípios de Ponte Alta do Tocantins, Mateiros, São Félix do Tocantins, Lizarda, Rio Sono, Novo Acordo, Santa Tereza do Tocantins, Lagoa do Tocantins e Rio da Conceição.
Com um bioma que transita entre cerrado e caatinga, o Jalapão desperta encantamento. Seus 34 mil hectares é uma região árida pontilhada de oásis com águas cristalinas, cortadas por rios, ribeirões e riachos. Dentro desse bioma, árido e abundante em água, formam-se áreas de brejo e veredas, repletas de buritis e terra úmida ideal para o crescimento da matéria-prima mais importante da região, o capim dourado.
Foi entre os chapadões e as águas do Jalapão que o Quilombo Mumbuca se formou, composto por ex-escravizados vindos da Bahia. O nome vem das abelhas Monbucas, mas também pode referenciar a união e o trabalho coletivo das abelhas. O quilombo é berço do trabalho com capim dourado na região, lugar de compartilhamento de saberes e mutirões em busca de matéria-prima, mas também de luta e resistência em busca de autonomia e sustentabilidade nos processos de colheita e feitura.
O entendimento sobre o território e os ciclos de colheita são necessários para todos que encontram no artesanato sua fonte de renda e subsistência. O capim que nasce entre abril e maio perto de brejos e veredas não pode ser colhido precocemente, como conta uma das artesãs (não identificada em vídeo):
“Quando se arranca verde, a rosetinha que fica no pé do capim sai junto”.
A época da colheita ocorre a partir do dia 20 de setembro, início da primavera, momento em que o capim dourado está maduro. Caminhões e cavalos seguem rumo a região abundante da matéria-prima com famílias que colhem e batem o capim no intuito de deixar as cabecinhas ou sementes na própria região de onde foi extraído enquanto cantam em coro:
“Meu capim, meu capim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado…
Foi meu amor que me disse assim que a flor do campo é o meu capim”.
Associação Capim Dourado Mumbuca – TO | Créditos: Josiane Masson.
O capim dourado não precisa ser semeado e são esses saberes e cuidados que fazem o Quilombo de Mumbuca ser território de preservação e cuidado para que nunca falte o capim dourado que sustenta toda a comunidade.
Como nasce um polo criativo?
Foto: Associação dos Extrativistas e artesãos do Povoado da Prata – TO | Créditos: Paula Dib.
O artesanato com capim dourado conta com mais de 100 anos de tradição. Desenvolvido e perpetuado pela Comunidade Quilombola de Mumbuca, o ofício tem origem indígena, passado aos quilombolas pelo povo Xerente ainda no século XX, como citado em texto anterior da ARTESOL:
“saíram caminhando pelo lado do Rio Araguaia e passaram pelo povoado quilombola Mumbuca e ensinaram alguns moradores a “costurar capim” com a seda de buriti. Desde então, esse saber tem sido passado de geração para geração”.
Dona Guilhermina Ribeiro da Silva, conhecida como Dona Miúda, foi uma das mestras e precursora do artesanato na região, responsável por ensinar e transformar o ofício em tradição cultural na região. Ensinou filhos, sobrinhos, netos e a quem tivesse interesse, todo o processo de extração, secagem, feitura da seda do buriti e criação das peças.
Inicialmente os homens colhiam o capim e a folha do buriti para feitura dos fios de seda, enquanto as mulheres criavam as artesanias. Com o passar dos anos, o processo de colheita virou um ritual familiar e comunitário, no qual caminhões e cavalos saem carregando mulheres, homens e crianças em direção aos campos de capim dourado. Os cantos ecoam ao longo do trajeto e durante o processo de arranque e o momento é de celebração e respeito com o território.
As artesãs mais antigas contam que antes as peças eram levadas em burros, por seus pais e maridos, para outras regiões do Tocantins para serem vendidas. O retorno desses homens com dinheiro, comida ou presentes parece marcar a memória afetiva de muitas artesãs. Apesar da tradição secular:
“Só em 1990 o governo de Tocantins começou a investir na divulgação e difusão do saber-fazer dos artesãos de Mumbuca com finalidade de promover geração de renda para toda região do Jalapão” (BELAS, 2012).
Entre buritizais e campos de capim, mais de 800 artesãos compartilham momentos de colheita, cantorias e criação. Entre eles, Maurício da viola de buriti, neto de Dona Miúda, sobre a tradição do capim dourado compôs:
“Mas eu vou colher capim
Pra mim costurar.
Tradição da minha avó,
Aprendi neste lugar
Eu não posso mais deixar.
Pra vocês que estão aqui
Prestem muita atenção
Pois aqui no povoado
Costurar capim dourado
É a nossa tradição”.
Maurício da viola de buriti
Artesã da Associação Capim Dourado Mumbuca – TO | Créditos: Divulgação Artesol.
Como se mantém um processo criativo?
Graci, Dona Miúda, Doutora…Mulheres “filhas do dourado”, como bem disse Dorivã Borges em sua canção que homenageia o povo, o território e o ofício com capim dourado. Nomes impossíveis de não serem pronunciados quando se fala da perpetuação dessa tradição ancestral no Jalapão.
A insistência dessas mulheres em passar adiante rituais, processos e ofício transformou a realidade local de centenas de famílias que não possuíam renda. Foi observando o potencial do artesanato na região que o estado de Tocantins iniciou os investimentos no Jalapão e, por consequência desses investimentos, o que antes era complemento, transformou-se em fonte de renda principal de muitas casas fazendo nascer inclusive, o desejo e criação de inúmeras associações na região. Entre elas está a AREJA (Associação dos artesãos em capim dourado da região do estado do Tocantins), formada em 2008 e responsável por unir diversas associações em busca do selo de IG (Indicação geográfica) do INPI. O selo, conquistado em 2011, abrangeu 8 regiões do Jalapão, 11 associações de regiões diversas e cerca de 800 artesãos.
O IPHAN também incluiu o saber-fazer no Inventário Nacional de Registros Culturais (INRC), reforçando a importância e reconhecimento do ofício por instituições e poderes públicos, colaborando efetivamente na proteção desses territórios e na manutenção e preservação desses saberes afro-ameríndios.
Para que a tradição se perpetue por muitas gerações, se faz necessária a proteção do território com projetos de leis e políticas públicas que pensem no plano de manejo, tanto do capim dourado como das veredas de buritis. Em 2019, o Governo de Tocantins sancionou a Política Estadual de Uso Sustentável do Capim-dourado e intensificou junto ao Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) ações de educação ambiental ou orientações, visando a capacitação dos artesãos e associações extrativistas, principalmente em períodos de colheita.
Atualmente existem 538 extrativistas de 8 associações autorizados pelos órgãos ambientais, mas o extrativismo ilegal na região, infelizmente, faz parte da realidade local e ainda ameaça o bioma e a tradição artesanal.
O cuidado faz parte dos modos de fazer dos artesãos, das artesãs e dos extrativistas que amam e se orgulham do ofício e do brilho do capim dourado. São eles os principais responsáveis pela preservação dos campos e da tradição histórica e afetiva dos mutirões de colheita. E para o ouro do cerrado não faltam canções:
Não doura antes do tempo
Tem a hora e o momento
De colher que é de plantar
Capim dourado
Nos dá tudo do sustento
Quem faz dele o seu talento
Tá cuidando pra ganhar
Capim dourado
Douradinho de beleza
Pelas mãos da natureza
A riqueza: O pão já lá
Capim dourado
É um fruto do cerrado
E o cerrado se serrado
Se queimado
O que será da gente
Que vive e que sonha
Ser contente
Qual fruto e futuro pela frente
Quem sente é que sabe cuidar
Catando coco, menino
Catando coco, menina
Catando coco enquanto doura o capim…”.
(Josino Medina)