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Sobre as criações
Tradicionais bordados coloridos em ponto-cruz – uma forma popular de bordado em fios contados na qual os pontos se cruzam em formato de “X”. Acredita-se que seja a mais antiga forma de bordado que se tem conhecimento e pode ser encontrado em todo o mundo, mas especialmente na Europa e Ásia, onde existem muitos registros antigos encontrados.
Em Turmalina, norte de Minas Gerais, esse fazer vem sendo transmitido de mãe pra filha há gerações. Não se tem lembrança, ao certo, de quando a tradição começou. As mulheres mais pobres plantavam o algodão para se vestirem, faziam suas próprias roupas e as roupas de casa – de cama, mesa e banho. A variação entre o tecido que se vestia e o que se usava na casa era apenas a espessura: o primeiro mais fino e o de uso doméstico mais grosso. Dona Joana Trindade se lembra bem: “Eu já vesti e eu não gostava não, porque era pesado e quente.”
O ponto cruz é executado em um tecido de fios tramados. No século 16, o bordado era feito com fios de seda ou de lã sobre linho já que a linha de algodão que conhecemos hoje praticamente não existia e muito menos essa variedade de cores. Atualmente o fio de algodão é a linha de bordar mais comum – um fio de algodão mercerizado, composto por seis fios levemente torcidos, facilmente separáveis.
Em Turmalina ainda se preserva a tradição de tecer, de produzir o próprio tecido, no tear manual, porém não mais com o algodão plantado como antigamente. “Ninguém mais planta. Não existe mais tecido feito com algodão plantado. Algodão legitimo fiado mesmo. A gente compra o barbante, tece no tear e depois borda.” Existe toda uma cadeia produtiva formada por tecedeiras de Turmalina e Berilo que fornecem o tecido produzido manualmente e pelas bordadeiras, que executam os desenhos nas peças com a técnica do ponto de cruz, onde a artesã deposita os pontos sobre o padrão impresso no tecido.
Sem o algodão fiado nos quintais, as tecelãs hoje adquirem o barbante em Ituiutaba (MG). Em teares manuais rústicos, tecem os fios e constroem os tecidos. Ao receber o tecido já pronto, a bordadeira corta no tamanho desejado, dá o acabamento na medida que precisa e “põe” pra bordar. Joana já bordou muito. Conta hoje com a ajuda de outras artesãs para executar seu trabalho. Se dedica mais a marcar, escolher as cores e cuidar do acabamento. “O artesão, é um quebrando o galho do outro.” Há alguns anos Joana perdeu parte da visão do olho direito, fez uma cirurgia e não pode mais bordar. “Mas nunca largo o bordado. Às vezes acabo bordando um pouquinho.”
A marcação do bordado refere-se a contagem de todas as linhas do tecido para uma definição precisa de sua posição, o que garante uniformidade, simetria e harmonia dos desenhos na peça. “Marcar não é riscar o pano, é contar a linha do pano e dividir onde você quer o trabalho, quantos fios que tem a colcha do pé até a cabeceira. Se fizer errado, você tem que desmanchar tudo e desmanchar é muito ruim, dá dó, tem um sentimento em cima daquilo. As vezes tem dia que a gente não tá com a cabeça muito boa pra colocar as coisas no lugar certo, é melhor nem mexer.”
Sobre quem cria
Maria Joana Rodrigues Trindade recebeu o ofício como uma herança de família, no tempo em que os fazeres tradicionais eram transmitidos de geração em geração. “Isso está no sangue. Sou de uma família de artesãos. Cresci aprendendo a fazer.” A mãe era fiandeira – plantava, colhia e fiava o algodão e fazia roupas para todos vestirem. “Ela tirava o caroço, fiava e fazia roupa. A gente ajudava a descaroçar o algodão.” Isso há mais de 60 anos, época em que não se produzia para venda, mas para uso pessoal. Com o tempo as artesãs passaram a comercializar suas criações, como forma de sustento.
Joana tinha entre seis a sete anos quando aprendeu a tecer e dos oito aos nove começou a bordar. O início foi difícil: tentava bordar flores mas as figuras mais se pareciam com coelhos e ratos. Trocava as peças por roupa, matéria prima, comida, arroz e feijão. Com o tempo aprimorou o bordado, aprendeu a tirar os desenhos dos livros e assim criou a família. Casou-se com 17 anos, teve quatro filhas: Maria Geslene, Aline, Eliane e Sueli.
Em 1982 participaram da primeira Feira Nacional, e estiveram presentes depois em quase todas as edições. Com a maioria dos maridos contrários, e ouvindo ofensas na cidade, Joana era quem “saía”. Montavam um grupo e dividiam as despesas entre todas para que a artesã fosse representá-las. O mesmo aconteceu depois com a Feira da UFMG da qual participam há vinte anos, a Feira do Vale do Jequitinhonha e tantas outras. “Com medo de sair pro mundo mas eu fui. A gente tinha muita precisão de sair pra vender. Nas primeiras vezes eu não sabia sair pra vender então eu trocava meu trabalho com quem sabia sair pra vender. Trocava por alimento, arroz, feijão, material, linha. Quando eu aprendi a sair, mesmo com muito medo de sair, eu aprendi a sair. De lá pra cá moça, as coisas melhorou demais”.
“Oh moça, se a gente pudesse falar, tem muita coisa importante pra gente falar que acontece nessa nossa vida de artesão. A gente não dá conta nem de falar. Nós artesãos passamos por muita dificuldade, e muitos desistem. Uma pena, porque tudo o que a gente quer na vida a gente tem que correr atrás, nunca desistir. Para outros artesãos que estão começando é muito importante ouvir isso: é difícil mas vale a pena, as conquistas é maior do que as dificuldades. Não se deve desistir, porque vale a pena.”
Lá se vão cinco décadas. De ofício e de ensinamento. A frente da Associação que ajudou a fundar com Cida, dona Valdete e Dona Duquinha (as últimas já falecidas) Dona Joana deu oficinas em muitos lugares, incluindo o Palácio das Artes, em Belo Horizonte, maior centro de produção, formação e difusão cultural de Minas Gerais e um dos maiores da América Latina. Mas como toda grande mestra, passa seu conhecimento mesmo é na porta de casa, onde recebe todo tipo de gente pedindo ajuda com o bordado: “Ajuda eu combinar as cores aqui? E eu digo: sim, eu ajudo. Marca aqui pra mim? E eu marco. As vezes eu pego uma agulha e dou uns pontos para ajudar. Uma espécie de um ensinamento, com o tempo elas vão praticando. E aprendendo.”
Sobre o território
Turmalina é um municipío mineiro localizado no Vale do Jequitinhonha, região conhecida pelos baixos indicadores sociais. Banhado pelo rio Jequitinhonha com exuberante beleza natural e riqueza cultural, vivem do cultivo de eucalipto e da lavoura de subsistência. Sofrem com poucas oportunidades de trabalho e êxodo de trabalhadores. Um lugar onde a cultura encontra forças nas inúmeras expressões populares que compõem seu patrimônio material e imaterial, incluindo o artesanato em algodão, que expressa o cotidiano e a vida das mulheres do Vale. Terra de mulheres fortes. Que lidam com orgulho com os desafios da vida na seca.
“O nosso trabalho tem a cara de Turmalina. O nosso trabalho quando é visto já é sabido que é nosso, que é de Turmalina. Eu aprendi que parece que a fortaleza das mulheres do vale é expressada no bordado e no trabalho delas. Certa vez, uma senhora me disse: Oh Joana vocês é forte demais, muito guerreira, forte demais porque sair de turmalina, de ônibus, carregando esse monte de volume, vocês tem que ser corajosa demais.” A isso, responde: “Eu não faço as coisas pensando que não vai dar certo não, eu penso que vai dar certo e acaba dando certo.”