A Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro é uma iniciativa da Artesol, organização sem fins lucrativos brasileira, fundada em 1998 pela antropóloga Ruth Cardoso. Seu objetivo principal é promover a salvaguarda do artesanato de tradição cultural no Brasil. Por meio de diversas iniciativas, a Artesol apoia artesãos em todo o país, revitaliza técnicas tradicionais, oferece capacitação, promove o comércio justo e dissemina conhecimento sobre o setor.

Maurício Linécia


Maurício, através do trabalho com as pêssankas, perpetua a memória de seus ancestrais ucranianos e aos povos eslavos. A fina e delicada arte de pintar ovos é enriquecida por um valor simbólico que expressa a celebração à vida.

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Itaiópolis – SC

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Sobre as criações

A pêssanka é considerada uma forma de escrita. Faz parte da cultura ucraniana desde a era pagã, quando era praticada como um modo de oferenda ao Deus Sol, responsável pela vida. Um objeto que estabelece uma ligação bastante profunda com a natureza. Era considerada um amuleto, oferecida em rituais que ocorriam no término do inverno e começo da primavera, período do ano quando tudo brotava e renascia. Não apenas na cultura ucraniana, mas em outras culturas, o ovo resguarda o simbolismo de uma nova vida.

Na era pagã as pêssankas eram mais relacionadas à magia. Uma época em que as religiões eram associadas à natureza, às tradições religiosas rurais e ao politeísmo. Nas mitologia greco-romana, tradições politeístas europeias e norte-africanas pré-cristãs cultivavam o respeito pelas forças vivas e sagradas da Natureza. Na Idade Média, quando houve a evolução do paganismo para a religião cristã (que se tornou oficial no Império), as pêssankas passaram a ser uma arte vista como bruxaria, e todas as práticas tidas como feitiçaria eram exterminadas.

O advento do cristianismo na Ucrânia foi marcado pelo batismo do príncipe Valdomiro que, considerado santo, foi canonizado, no ano de 988 d.C. A igreja católica fez tentativas de acabar com o costume das pêssankas, mas como ocorre com toda cultura tradicional, não conseguiu. Sabiamente decidiu incorporá-la, adaptando-a ao cristianismo através de releituras em seus rituais cristãos. A estrela que simbolizava a realização e o sucesso, no cristianismo passou a representar o próprio Cristo. A igreja manteve os mesmo traços, a mesma estética, mas construiu outros significados. Estabeleceram uma analogia do ovo com o símbolo da Páscoa: Cristo foi sepultado em uma tumba, que passou a ser representada pelo ovo – uma casca onde renasce a vida. Essa simbologia já acontecia no paganismo, e foi mantida no cristianismo.

Foto de divulgação Artesol

Foram muitas as tentativas de eliminar essa arte. Primeiro pela igreja católica, depois pelo comunismo no anos 70, época em que a Ucrânia esteve sob o domínio do regime comunista soviético e a produção das pêssankas foi proibida, no entanto as pessoas continuaram produzindo, escondidas.

Sem muitos escritos a respeito, Maurício Linécia, artesão catarinense de origem ucraniana, se aprofundou nesses significados e no que a pêssanka representava para o povo primitivo. O pouco que encontrou, reuniu e absorveu em seu trabalho. Suas criações trazem a frequente presença de estrelas – são diversos os modelos – que simbolizam realização e sucesso; de losangos, que representam diamantes e simbolizam a firmeza de caráter; e de vários outros elementos carregados de significados como os animais. O cavalo e o galo, por exemplo, traduzem vigilância e renovação espiritual porque assim como anuncia o nascimento do sol todas as manhas o galo anuncia o nascimento do homem em outro plano, espiritual – uma simbologia bem forte entre os povos eslavos. São objetos que guardam, na beleza de traços e cores, os espíritos dos antepassados, “uma forma deles estarem vivos e presentes, quando pratico, quando faço as pêssankas.”

Maurício trabalha com matérias primas bem escassas: utiliza vários tipos de ovo natural, desde codorna até avestruz. “É bem difícil de encontrar as cascas.” Adquire os ovos menores (de galinha, garnizé, ganço) com os próprios colonos. Os ovos de avestruz, resistentes e semelhantes a uma porcelana – ele encontra em outras localidades. Faz o trabalho de esvaziamento com uma técnica própria, injetando ar com uma seringa para que líquido comece a sair (o orifício fica quase imperceptível) – e os armazena. Realiza o trabalho a medida que as encomendas chegam. Finaliza com aplicação de um verniz sintético para impermeabilizar a peça e por último realiza a pintura. As peças feitas em ovos menores, mais frágeis, recebem a proteção de um suporte, para que fiquem mais seguras. Maurício passou a aplicar a simbologia das pêssankas em outros materiais: vasos, mandalas, mesas, potes, garrafas, objetos de cerâmica de vários formatos, materiais que adquire com fornecedores de outros municípios.

Sobre quem cria

Maurício Linécia nasceu e cresceu em uma colônia de ucranianos em Santa Catarina. Seu primeiro contato com essa arte milenar foi no ensino médio, durante uma aula de sociologia, quando uma professora propôs um seminário cultural sobre as etnias que tivessem tido representatividade na colonização do município. Nesse aprofundamento ele mergulhou no conteúdo simbólico das pêssankas e entendeu sua importância para a cultura ucraniana. Nesse mesmo estudo aprendeu a fazê-las.

Foto de divulgação Artesol

Buscou pela ajuda da Associação dos Jovens Ucranianos do Brasil, com sede em Curitiba e recebeu do presidente uma carta detalhada e bastante didática explicando seu processo de feitio e reunindo todas as informações que precisava para as primeiras tentativas. “Ele foi um mentor. Compartilhou o passo-a-passo.” Maurício não tinha o material apropriado, então fez adaptações. Desconhecia a técnica tradicional (feita com cera de abelha e bico de pena) e usou portanto tinta guache e pincel, técnica que foi bastante importante no aprendizado e mantém em uso até hoje. A primeira base utilizada foram ovos de ganço, decorados com tinta guache e tinta automotiva, disponíveis na época devido ao pai e irmãos serem mecânicos. Produziu também ovos de madeira com tinta acrílica e pincel, e simultaneamente aprendeu a técnica tradicional com cera. Praticou, aperfeiçoou, até os dias de hoje. “É um aprendizado constante.”

Mauricio cresceu em meio a celebrações liturgias realizadas na língua nativa. “Ainda é feito aqui, no domingo principalmente. É um rito bizantino, católico, mas de origem oriental. É bem diferente da língua latina”. Chegou a fazer filosofia e morou dos dezenove aos vinte e quatro anos em Curitiba em um seminário, onde deu aulas à outros seminaristas. De lá pra cá transformou o hobby em ofício.

“Estar preservando uma cultura, honrando meus antepassados e ainda tirar meu ganha pão, não existe nada mais realizador em relação a isso.”

Sobre o território

Distante 330 km da capital catarinense, o município de Itaiópolis está inserido na microrregião de Canoinhas. As manifestações culturais, o artesanato, os saberes e fazeres do imigrante eslavo compõem um vasto cenário que ilustra a cidade mais eslava de Santa Catarina. É berço da colonização polonesa e ucraniana no Estado, reunindo artesanato cultural, gastronomia típica e arquitetura que inclui o Núcleo Histórico de Alto Paraguaçu, bairro tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em um cenário deslumbrante.

Integra a Região Turística Caminhos do Contestado, de relevante valor histórico em virtude da Guerra do Contestado, ocorrida no início do século XX e se destaca pelo turismo étnico-cultural graças à herança arquitetônica, gastronômica e cultural proveniente da colonização ucraniana e polonesa no município e características culturais da imigração eslava que permanecem até os dias atuais compondo seu patrimônio material e imaterial.

Maurício já enviou peças para o Japão, Canadá, EUA, Itália e atende turistas de várias origens em busca desse presente com valor simbólico que expressa a celebração à vida. Com o apoio do Sebrae e da Promoart (RJ) ele participa regularmente de feiras, exposições e eventos onde faz demonstrações de seu trabalho. Uma arte que vem sendo renovada através do trabalho árduo, muitas vezes (ou quase sempre) voluntário, de descendentes. Que transmite a cultura de antepassados e releva o desvendamento da natureza pelo homem.

“Uma arte que mudou minha alma. Não me vejo mais sem pintar, seria como se tirasse minha essência de viver. Fico ate emocionado em falar, como Deus escreve certo por linhas tortas, e na minha vida foi assim. Seminário não te oferece preparação para o mundo do trabalho. Pra ter força pra continuar pintando e enaltecendo essa tradição, a valorização dos ancestrais foi fundamental.”

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