A Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro é uma iniciativa da Artesol, organização sem fins lucrativos brasileira, fundada em 1998 pela antropóloga Ruth Cardoso. Seu objetivo principal é promover a salvaguarda do artesanato de tradição cultural no Brasil. Por meio de diversas iniciativas, a Artesol apoia artesãos em todo o país, revitaliza técnicas tradicionais, oferece capacitação, promove o comércio justo e dissemina conhecimento sobre o setor.

Serrita – PE


O Território

O município de Serrita está localizado a 537 km de Recife, no Sertão Central do estado de Pernambuco, próximo a Salgueiro. Serrita é uma cidade pequena, com 19.226 habitantes, atravessada por uma barragem e de clima semiárido. No caminho, os juremais floridos saltam aos olhos. Região de caatinga, o que parece seco e morto no verão, com um pouco de água e umidade enverdece, floresce, serve de sombra e medicina para população local e comida para animais da região, desfazendo qualquer imagem preconceituosa do sertão como região pobre e infértil do país.

Foto: Laís Domingues.

Como nasce um polo criativo?

Falar da tradição do couro em Serrita sem adentrar na cultura do vaqueiro torna-se impossível. Parte da população cuida de vacas e bodes para si e para terceiros. A venda desses animais em feiras semanais serve de fonte de renda para parte da população rural. Na região é comum atividades como “pega de boi” e “vaquejada”, que também movimentam a economia local e reforçam a tradição do vaqueiro no sertão pernambucano.

Uma das figuras centrais na história de Serrita é o Padre João Câncio, que foi ordenado padre e transferido para a Paróquia de Serrita. João via a fé como algo inerente ao ser humano. Sendo assim, ele não precisava impor nada aos demais e iniciou o processo de evangelização de acordo com os costumes da comunidade. Foi com ouvidos atentos que João Câncio tomou conhecimento da história de Raimundo Jacó, vaqueiro, considerado um dos mais competentes da região, encontrado morto sem investigação ou explicação.

A história de Raimundo Jacó é o mote do evento mais tradicional da cidade, a Missa do Vaqueiro, que leva uma média de 70 mil pessoas para o sertão de Pernambuco. A missa do vaqueiro foi criada pelo Padre João Câncio. O poeta Pedro Bandeira, comentou sobre Jacó em entrevista:

“Foi um fenômeno como vaqueiro. Porquê? Porque era muito humilde, muito simples, muito pobre. Saudoso e poético. Que até os passarinhos se aproximavam dele. Como se aproximavam de São Francisco quando falava das montanhas. Ele pegava o boi de pé. Cansava o boi. Corria atrás do boi até o boi cansar”.

O couro é matéria fundamental para que o vaqueiro adentre a caatinga composta de vegetação espinhosa. Chapéu, gibão, arreios e selas protegem o corpo dos vaqueiros e dos cavalos, como escudo nas pelejas das pegas de boi. Assim, a confecção dessas indumentárias tornou-se tradição na região, gerando renda a partir do artesanato e das demandas locais do povo camponês do semiárido pernambucano.

Raimundo, que era primo de Luiz Gonzaga, ganhou em sua partida uma das canções mais bonitas de seu primo, “A morte do vaqueiro”, que, com o passar dos anos, se tornou símbolo dos vaqueiros nordestinos. Sua história permeia a vida da população através de estátuas e monumentos espalhados pelo município.

Bom vaqueiro nordestino

Morre sem deixar tostão

O seu nome é esquecido

Nas quebradas do sertão

Nunca mais ouvirão

Seu cantar, meu irmão

[…]

Sacudido numa cova

Desprezado do senhor

Só lembrado do cachorro

Que inda chora a sua dor

É demais tanta dor

A chorar com amor”

Por resiliência e insistência, Serrita subverteu o possível esquecimento de Raimundo Jacó e transformou a sua história em arte, cultura e tradição.

Como se mantém um processo criativo?

Produção das peças em couro em Serrita – PE / Crédito da foto: Laís Domingues.

Tendo o couro como matéria-prima indispensável para a manutenção dessa tradição, os artesãos que se dedicam ao ofício de trabalhar e produzir a partir dele tornam-se figuras importantes na cidade. No município não existem muitas lojas de artesanato. Parte dos artesãos vivem na zona rural e investe nas produções de selas, arreios e gibão, necessidade local para uso dos vaqueiros e criadores de animais.

O couro de Serrita, apesar da intensa criação de bode na região, não vem do município, o único curtume fechou há alguns anos. Atualmente o couro vem de Cabaceiras – PB ou Petrolina – PE, geralmente tratado e em alguns casos já colorido.

Dentro do perímetro urbano, a grife Kassote, liderada por Felipe e Giovane, ocupa e cuida do Centro Cultural do Vaqueiro. Ambos foram aprendizes do mestre Zé Ivan, que também usa o centro cultural para suas produções e é responsável pela manutenção das máquinas e equipamentos do local.

O mestre Zé Ivan comenta que aprendeu a trabalhar com o couro experimentando por necessidade da vida sertaneja, seja de consertar um arreio, uma sela ou uma cabeçada. O couro se faz presente no cotidiano do camponês nordestino.

Atualmente Zé Ivan e os integrantes da grife Kassote direcionam suas produções para um público diferente dos artesãos e mestres da zona rural. Com apoio do Sebrae, Zé Ivan já formou dezenas de novos artesãos e junto a designers do estado desenvolveram peças exclusivas de moda e decoração. Luminárias, sandálias, quadros, bolsas, carteiras, uma infinidade de possibilidades que levam os sentidos para além do que se espera e que são vendidas e expostas no Centro Cultural do Vaqueiro e em feiras de artesanato em Pernambuco e outras regiões do Nordeste. Ele comenta que produz poucas selas, arreios e gibão pois, uma peça bem feita dura uma eternidade, sendo assim, as vendas tornam-se espaçadas, produzindo apenas por encomenda.

Para os artesãos da região, a Missa do Vaqueiro é o momento mais esperado do ano. Com apoio da Fundação João Câncio, as peças são expostas em uma casa de taipa na entrada do Parque Nacional do Vaqueiro, onde ocorre o evento. Mestre Zé Ivan comenta:

 “Passamos meses produzindo para a Missa do Vaqueiro, geralmente vendemos muito bem”.

A Fundação João Câncio que é liderada por Helena Câncio, ex-companheira do Padre João Câncio e atual presidenta da Fundação, é pilar na luta, reconhecimento e incentivo ao artesanato e cultura local, sendo fundamental na conquista e permanência do espaço hoje ocupado pelos artesãos do couro na cidade e pela continuidade do evento mais importante da região.

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