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Dona Alzira Santos


Uma das mais antigas artesãs da Renda Irlandesa, reconhecida pelo IPHAN como patrimônio cultural imaterial de Sergipe, Dona Alzira exerce seu ofício com primor, transformando cordões e linhas em obras de arte. Pela excelência de seu trabalho e profissionalismo segue ativa, recebendo muitas encomendas e repassando seus conhecimentos às rendeiras mais novas.

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Sobre as criações

Uma renda vinda do continente europeu que chegou no século passado em terras sergipanas e é hoje um bem tombado que faz parte da realidade emocional da gente dessa terra. Um ofício vinculado originalmente à aristocracia e mais tarde efetivado por mulheres humildes que reinventaram a técnica, o uso e o sentido deste saber-fazer costurado com lacê, linha, agulha e paciência. Uma arte minuciosa, cautelosa, feita com rigor e exatidão em incontáveis pontos vindos do cotidiano das rendeiras: pé-de-galinha, dente-de-jegue, escama-de-peixe, aranha, boca-de-sapo, abacaxi, cocada, caseado, ilhós, picote, barrete, linha passada, sianinha, tijolinho, caminho sem fim, dente de cavalo, estrelinha e tantos outros.

Compreendendo-a como um bem de natureza imaterial, em 2008, o Conselho Consultivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) conferiu o título de Patrimônio Cultural Imaterial à renda irlandesa produzida em Sergipe e seu modo de fazer foi incluído no Livro de Registro dos Saberes. Em 2013 recebeu o Selo de Identificação Geográfica pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Seu modo de fazer consiste em riscar ou copiar em papel transparente o desenho a ser elaborado. Fixar o papel riscado sobre papel grosso e alinhavar o lacê acompanhando as formas do desenho. Em seguida fixar em uma pequena almofada ou travesseiro (no caso de peças grandes). Preenche-se então os espaços vazios entre o lacê, com pontos que são tecidos com agulha e linha. Separa-se a renda do papel e do risco sobre os quais foi executada. Corta-se os alinhavos que os prendiam e “limpa-se” a peça de renda, catando-se os fiapos de linha, restos do alinhavo que ficaram presos.

Sobre quem cria

Alzira Alves Santos é uma das mais antigas artesãs em atividade nessa prática em Divina Pastora e no estado de Sergipe. Começou por volta dos 10 anos, época em que as crianças eram levadas para a roça para ajudar os pais no plantio de cana e milho. A vontade em “escapar” desse destino, fez com que o pai lhe oferecesse duas opções: ir para a roça ou aprender renda com as tias. Como não queria passar o dia trabalhando sob o sol forte nessa fase da infância, optou pela segunda alternativa. As lições com a irmã de seu pai, tia Marocas, seguiram-se mais tarde do aprendizado dos “riscos” com Ercília Theodoro, a tia Sinhá. Ambas foram as primeiras pessoas de origem mais simples a aprenderem as técnicas das senhoras da aristocracia local, no início do século XX, quando acredita-se que a renda foi trazida, por meio de freiras italianas – as missionárias se utilizavam das técnicas da renda com o objetivo de catequizar mulheres e crianças.

Dona Alzira começou executando pequenas peças. De uma família de poucos recursos financeiros, ela sempre teve na renda seu meio de subsistência. Na época, recebia-se o pagamento apenas se a peça atingisse qualidade satisfatória, o que fez com que ela fosse se aprimorando, diante das recusas de produtos quando ainda não estavam suficientemente bem acabados. Casou-se, teve filhos e seguiu se mantendo com o feitio da renda. As mãos hábeis transformam, com destreza, cordões e linhas em obras de arte. Pela excelência de seu trabalho e profissional.

Com mais de 65 anos, acumula mais de meio século dedicado a essa arte. Tornou-se uma mestra no “risco” da renda e quando uma artesã assume tal tarefa sempre mostra a ela para que avalie e corrija quando é preciso. De suas nuances e singularidades, Dona Alzira é muito detalhista e perfeccionista. Demonstra um domínio e habilidade muito grandes, indicando às colegas quando o ponto deve ser mais ou menos apertado; como deve ser iniciado para que fique firme, bem acabado; qual o ângulo correto para iniciá-lo, se por aqui ou por ali pra ficar encorpado; ajuda a consertar simetria. Muitas rendeiras da cidade passaram pelas suas instruções. E ela repassa continuamente seu conhecimento para outras artesãs, de forma generosa e colaborativa. Reúnem-se uma ou duas tardes por semana em uma roda de conversa onde mostram os trabalhos, a mestra opina, orienta, mostra o que está produzindo, em uma grande troca de saberes. Um verdadeiro e rico intercâmbio entre as artesãs mais e menos experientes, fortalecendo o grupo como um todo. 

“O fazer artístico educa, ensina, nesse caso da renda irlandesa, as gerações vindouras a apreciá-la, a produzi-la. (…) As artesãs mais velhas ensinam aos mais novos como fazê-la, e isso comunica a permanência da renda (…) Um bem que educa, divulga uma realidade histórica e promove o resgate dos dados culturais dos memorialistas desses municípios, que ao ensinarem, divulgarem e perpetuarem a prática do rendar promovem reconhecimento, educação, entre outras virtudes necessárias ao crescimento de um indivíduo patriota e cidadão. (…) As expressões culturais constituem um dos mais intensos exemplos da criatividade e da persistência das tradições das diversas etnias que se entrecruzaram e formaram a nação brasileira”.

Estefanni Patricia Santos Silva

Sobre o território

A renda irlandesa é um dos produtos artesanais mais requintados e remotos do estado de Sergipe. Pesquisadores afirmam que é o único lugar do mundo que ainda a fabrica. Distante 39 quilômetros da capital, o município de Divina Pastora é seu principal território. Onde ocorre anualmente a peregrinação à Virgem Divina Pastora, um evento religioso que reúne milhares de pessoas que vão pagar suas promessas. Dentro da igreja matriz a arte das rendas irlandesas é admirada nos altares, na decoração e nas indumentárias despertando a curiosidade da multidão em conhecê-las.

A renda chega à cidade pelas mãos de mulheres e assim permanece, mantendo-se uma atividade exclusivamente feminina. Uma trama composta por contribuições do passado e atuais de mulheres anônimas e esquecidas numa cidade pequena do interior. Onde a renda é a teia que tece suas vidas, a partir de onde se relacionam, se divertem e encontram forças para continuar vivendo. Através dessas mulheres, essa arte, testemunho das herança deixadas pelos ancestrais que contribuíram no processo sociocultural do local, se perpetua e é constantemente recriada pela comunidade, apesar da redução por conta de jovens e adultas que partem para estudar e trabalhar em outras regiões. 

Divina Pastora é uma cidade arborizada, calma, situada no ponto mais elevado de onde se descortina o vale do Rio Cotinguiba, à margem do Rio Sergipe. As casas são simples. O calor escaldante e o silêncio de doer à alma formam o pano de fundo dos dias de Dona Alzira. Em sua casa, no quarto onde costuma trabalhar, acompanhada de outras mulheres, mantém a janela aberta, voltada para a rua, favorecendo a parada de pessoas para conversar. Enquanto fazem a renda, tecem também relações sociais. Um trabalho que se acrescenta às tarefas de donas-de-casa onde é comum encontrar adolescentes e crianças, meninas com seu paninho na mão tentando aprender, o que pressupõe a socialização delas para o trabalho da renda. Onde também ficam os animais domésticos. Nos finais das tardes, com a temperatura mais amena, as crianças brincam na rua, os homens conversam ou dormem e as mulheres seguem o feitio nas varandas ou calçadas das casas e no entorno da praça central, aproveitando a luz natural. Um lugar onde se tem a forte sensação de outro tempo e espaço. 

Igreja Matriz de Nossa Senhora da Divina Pastora – Divina Pastora – SE

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