A Rede Nacional do Artesanato Cultural Brasileiro é uma iniciativa da Artesol, organização sem fins lucrativos brasileira, fundada em 1998 pela antropóloga Ruth Cardoso. Seu objetivo principal é promover a salvaguarda do artesanato de tradição cultural no Brasil. Por meio de diversas iniciativas, a Artesol apoia artesãos em todo o país, revitaliza técnicas tradicionais, oferece capacitação, promove o comércio justo e dissemina conhecimento sobre o setor.

Lagoa do Mundaú – Alagoas


O Complexo Estuarino Lagunar Mundaú/Manguaba (CELMM) está localizado em Alagoas, local marcado pela pesca, turismo e pelo bordado Filé, que combina influências do bordado europeu com as técnicas usadas para construção da rede de pesca, o que resulta em um bordado único e reconhecido em todo país.

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O Território

Bordados filé / Crédito das fotos: divulgação.

Com área total de 7.844 km², o Complexo Estuarino Lagunar Mundaú/Manguaba (CELMM) está localizado em Alagoas e é formado pela Lagoa do Mundaú, derivada do Rio Mundaú, e pela Lagoa de Manguaba, abastecida principalmente pelas águas dos Rio Paraíba do Meio e Sumaúma. Os 3 rios abastecem os lagos, que se interligam e convergem para o oceano Atlântico, sendo considerado um dos ecossistemas mais importantes do Brasil.

Com clima tropical, semi-úmido e estações bem definidas (seca e úmida), a região é responsável pelo sustento e renda de cerca de 260 mil pessoas que dependem direta ou indiretamente do complexo estuarino, seja através da pesca e da venda, do transporte fluvial ou do turismo. O fato é que as cidades de Pilar, Marechal Deodoro, Coqueiro Seco, Santa Luzia do Norte, Satuba e Maceió, banhadas pelo complexo, são permeadas por dinâmicas econômicas e sociais que giram em torno das águas desses afluentes que correm para o mar.

Partindo desse olhar atencioso para o território e para a população ribeirinha que habita a região, torna-se fácil entender o nome dado ao bordado Filé, advindo do francês filet que significa rede. Parte importante do processo que marca o princípio da criação do bordado tem como base a produção de uma malha ou rede, feita com a mesma agulha da rede de pesca, a navete ou agulha de tarrafa. Sendo assim, a mesma artesã que borda filé, também domina a técnica de tecer uma rede de pesca, fazendo dos fios e das águas sustento e paisagem para seu processo criativo. No lugar de peixes, flores e fios coloridos falam da paixão das artesãs nos municípios do complexo estuarino que margeiam os lagos enquanto bordam.

Como nasce um polo criativo?

O bordado de filé da Região das Lagoas tem origem parecida com boa parte das técnicas têxteis encontradas no Brasil. Chega no litoral alagoano junto à colonização e a catequização católica, que ensinava para as mulheres da região artes e manualidades para serem prendadas, mas não só.  Entre a lógica machista e o processo de catequização e dominação cultural europeia, o bordado filé surge de um cruzamento de heranças artesanais indígenas e ribeirinhas.

Apesar da similaridade das rendas encontradas em regiões da Itália e Portugal, observa-se no bordado dos Lagos de Mundaú e Manguaba influência direta das tecituras em palha e da técnica de construção de instrumentos de pesca. Sobre essa perpetuação de saberes indígenas e ribeirinhos, Manuela Carvalho, em seu trabalho de mestrado transcreve:

“[…] Porque o filé, ele, como diz a história, aconteceu por conta da rede de pesca. […] As mulheres não tinham o que fazer, então como tinha muita rede velha, elas começavam a fazer, a usar essas redes trançando linha, – creio eu que era linha -, nas redes de pesca. E com o tempo, ao invés de estar usando o nylon, começaram a usar linha de algodão. [E03]”.

Manuela Carvalho.

Foto: Wesley Menegari.

As artesãs da região, quando questionadas sobre como aprenderam o ofício, compartilham de relatos parecidos. Gerações e gerações de mulheres que buscam autonomia financeira para manter seus lares, mas também o desejo de perpetuar uma paixão e um ofício que através das mãos acalenta o coração. Muitas das mulheres que iniciaram a tradição do filé na região eram companheiras, filhas ou netas de pescadores e auxiliavam também no reparo de redes de pesca e dividiam o tempo com as águas.

Dilma Oliveira, artesã antiga do bairro do Pontal da Barra, em entrevista para GNT, conta que as mulheres começaram a fazer o filé de Alagoas tentando simular a técnica de labirinto, mas como o linho não chegava com frequência na região, começaram a fazer a base inspiradas pelas redes de pescas dos maridos, com espaçamentos menores, chamadas de malha de talo.

Esse relato confirma o cruzamento de técnicas trazidas pelos europeus e o próprio conhecimento do território, originalmente indígena. Dilma também comenta que as artesãs começaram a entregar os bordados para os marinheiros que passavam pela região para que fossem revendidos e, assim, o Filé alagoano passou a ser conhecido dentro e fora do país.

Como se mantém um processo criativo?

Foto: Agência Alagoas.

O processo de perpetuação da tradição do Filé em Alagoas, sem dúvidas passa pelo compartilhamento de saberes entre mulheres. Mas também conta com apoio de designers e instituições como o SEBRAE, que se preocuparam com a catalogação de pontos, cores, materiais utilizados e dão destaque para a importância dos diferentes pontos e técnicas adaptados e criados na própria região das Lagoas do Mundaú e Manguaba, diferenciando o filé alagoano do trazido pelos colonizadores europeus.

Entre os anos 1970 e 1980 o filé passou por um período de crise e desvalorização por conta do uso de materiais de menor qualidade, como uso de linhas mais grossas, por exemplo. Na época ainda se reproduzia bastante os pontos e técnicas trazidos pelos portugueses, pois foi nos anos 1990 que as filezeiras passaram a investir na qualidade e durabilidade dos materiais em busca de uma maior valorização das peças, além de iniciar a busca pelo título de patrimônio imaterial.

Em 2008 o SEBRAE inicia um trabalho de desenvolvimento e manutenção criativa da técnica têxtil na Região das Lagoas e, em 2014, o filé alagoano ganha o título de Patrimônio Imaterial de Alagoas, período em que o trabalho das artesãs também voltou a ser valorizado e o sentimento de associativismo passou a permear as dinâmicas de trabalho da região. Ainda em 2014 cria-se o INBORDAL (Instituto do Bordado filé de Alagoas), reunindo várias associações e artesãs com o intuito de “Proteger a tradição, garantir produtos de qualidade fortalecendo e promovendo o ofício” (CARVALHO, 2017).

A partir dessa iniciativa, apoiada com instituições públicas e privadas, o bordado de Filé ganha em 2016 o Selo de Indicação Geográfica do INPI, reafirmando a identidade própria conferida aos trabalhos das artesãs da região. Para a obtenção do Selo, as artesãs participaram de oficinas e cursos para garantir a manutenção da qualidade das peças produzidas.

Atualmente são mais de 100 pontos existentes, entre eles os mais tradicionais como matame e barafunda. As artesãs mais novas começam o processo de aprendizagem pelo entendimento dos materiais utilizados: agulha, molde de bambu ou madeira para tecer, telas e bastidores para esticar e banho de goma de milho para finalizar. A princípio, aprendem a criar a rede ou malha e posteriormente passam a aprender os inúmeros pontos de preenchimento. Assim, entre fios coloridos e redes que remetem a atividade ancestral da pesca, as filezeiras sustentam suas famílias e regalam o ofício para filhas, sobrinhas e netas na beira das águas dos lagos de Mundaú e Manguaba.

CARVALHO, Manuella Maria de Lyra Alcântara – A identidade cultural e sua [re]significação: o bordado filé de Alagoas na trama da indicação geográfica. Dissertação de Mestrado. UFPE. 2017.

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