Marlice Machado
Artesã há 50 anos, Marlice é reconhecida pelo primor do acabamento e pela generosidade. Um tesouro em pleno Jequitinhonha que mantém vivo o ofício transmitido por sua avó e tece sonhos para o futuro da comunidade.
Foto: Jéssica Kawaguiski
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Sobre as criações
As peças tecidas pelas mãos ágeis e experientes de Marlice são feitas de algodão, após ter sido cardado, fiado e tingido com cascas, folhas e raízes da região. Com desenhos geométricos ou inspirados na rica cultura e fauna regional. Assim, os painéis, jogos americanos, redes de dormir, mantas e passadeiras são adornados com as casas nas quais morou na infância, as árvores frondosas, canoas no rio Jequitinhonha e os desenhos geométricos aprendidos com Dona Ana, sua avó e mestra na arte de tecer.
Antigamente o algodão era produzido na região do Jequitinhonha, onde também havia quem fizesse o tratamento da pluma até obter o fio, sendo em seguida tecido nos teares manuais para produzir roupa de cama, mantas, redes e todo tipo de tecido para uso doméstico, podendo ser vendido ou trocado por mantimentos. De alguns anos pra cá, porém, a produção de algodão na região diminuiu significativamente, o que leva Marlice a ter certa dificuldade em encontrar a matéria-prima. Por isso, incentiva as parcerias com pequenos agricultores de assentamentos da região para que plantem algodão. Também quer retomar os grupos de mulheres que cardam e fiam o algodão, temendo que esses ofícios se percam.
O tingimento é uma das especialidades de Marlice, que trabalha com plantas da região: urucum, jenipapo verde, angico, casca de aroeira, casca de cajueiro. Marlice, que é conhecida pelo belo acabamento das peças, quer aprimorar seu tingimento: “Tenho vontade de descobrir cada vez mais tingimentos, pra descobrir mais técnicas e dar 100% de garantia da cor, pra não desbotar”. Após tingidos os fios, estão prontos para serem tecidos, o que acontece com paciência e primor no tear mineiro, com dois quadros de liço. No tear, primeiro prepara-se a teia na urdidura, espécie de tela de madeira com pentes. Depois, a tecelã segue orientações de determinados tipos de desenhos e padrões que deseja tecer. Por fim, ela joga a lançadeira, um cilindro que percorre o tear de um lado para o outro, passando o fio, um para lá, um para cá, formando a trama. Marlice imprime à trama diversos padrões e desenhos, através de um trabalho minucioso de bordado com os dedos: alternando cores, ela desenha as casinhas, árvores, flores, canoas e outros elementos iconográficos típicos da região. “Eu bordo no tear, minhas agulhas são meus dedos”.
Sobre quem cria
Marlice Machado de Oliveira nasceu em Berilo, em Minas Gerais, na Comunidade Quilombola de Roça Grande. É de uma família de agricultores que plantavam algodão, que era cardado, fiado na roca manual pela mãe e tias, e tecido pela avó. Rodeada por uma comunidade que se reunia em torno da cultura do algodão, começou a trabalhar com a fibra com 9 anos. Aprendeu a tecelagem com sua avó, Dona Ana, e nunca mais parou. Com sete irmãos e irmãs, Marlice foi a única a continuar com o ofício, levando à frente o legado da sua comunidade e da sua família.
“Meus sete irmãos deixaram a tecelagem e foram buscar outras formas de sobrevivência e eu continuei com a tecelagem, sou a única a continuar com a tecelagem, todos os meus irmãos deixaram, mas eu continuei. E hoje eu vejo muito mais esse valor do que se eu tivesse buscado sobreviver de outra coisa, porque eu tive várias oportunidades dentro desse contexto, dessa cultura, desse ofício, dessa riqueza familiar que eu trago até hoje dentro da minha vivência”.
Sua mãe foi uma das fundadoras da Associação de Artesãos de Roça Grande, onde nasceram, mas Marlice, no início dos anos 2000 se mudou para a cidade de Jequitinhonha, para a comunidade de Guaranilândia. A convite de um pároco, Marlice participou de um projeto para dar continuidade a cultura da tecelagem, que estava se perdendo na região. Neste projeto elas plantavam o algodão, que eram fiados pelas artesãs de Francisco Bradaró, e tecido pelas participantes do projeto, sob a orientação de Marlice.
Profundamente envolvida com a transmissão dos saberes da tecelagem, ela trabalhou 28 anos no estado, dando aulas de tecelagem para os anos finais do ensino fundamental, dentro do quadro da disciplina de artes. Com apoio do banco Bradesco, comprou os teares manuais e montou uma oficina para receber os alunos e transmitir seus saberes.
Atualmente participa de uma associação de artesãs e artesãos de Guaranilândia, na região rural de Jequitinhonha, que trabalham com tecelagem e bordado. “Hoje eu trabalho com grupos que as avós fiavam e teciam, tem histórias muito lindas aqui!”, relata. A participação no grupo garante subsistência e união para essas mulheres, que ao resgatarem o ofício, constroem ponto a ponto, mesmo com poucos recursos, os passos para o futuro.
Com 50 anos de tecelagem, foi premiada pelo Banco do Nordeste, na categoria de melhor produto do Vale do Jequitinhonha. Generosa, reconhece tais conquistas como não sendo apenas dela, mas de toda a sua comunidade, das artesãs da associação: “foi um grupo que caminhou junto e tem o direito de receber, eu tenho esse carinho, o amor de dividir esse prêmio com todas elas”. Participou de uma viagem para Milão em 2022, na Itália, em encontro que reunia tecelões manuais de todo o mundo. Dentre mais de 68 participantes deste encontro, foi escolhida para ficar 40 dias na Itália e conhecer mais sobre a tradição da tecelagem no país. Conquistas que Marlice conta com emoção.
Têm apoio da prefeitura de Jequitinhonha, da EMATER, do Banco do Nordeste e da Viva Vale, mas infelizmente, o acesso ao recurso fundamental, o algodão, é difícil. As secas e a falta de acesso à água fizeram cair os plantios da fibra. Perseverante, busca parcerias para incentivar o plantio na região, a fim de resgatar essa cultura e garantir o acesso à matéria-prima que entrelaça tantas gerações, histórias e saberes.
Ela enfrenta todos os desafios com sonhos ainda mais bonitos. Hoje ela quer, além de garantir a manutenção do ofício, aperfeiçoar o tingimento natural das suas peças, “Meu sonho é fazer um curso no Marrocos, lá é o berço do tingimento. Quero conhecer as técnicas com as flores, que ainda não conheço”.
Sobre o território
Jequitinhonha fica a nordeste de Minas Gerais, a 685km de Belo Horizonte, capital do estado. A cidade está localizada na região do baixo Jequitinhonha, tem cerca de 24 mil habitantes, estando localizada na margem esquerda do rio Jequitinhonha, onde abriga uma Reserva Biológica de Mata Escura, um pedaço intocado da Mata Atlântica. Tem como principais atividades econômicas a pecuária e a agricultura.
De forma geral, nas margens dos rios, que são mais planas, se encontram as matas ciliares que possuem uma vegetação mais exuberante. Nas áreas mais elevadas, que podem chegar a uma altitude de mais de mil metros, estão os campos rupestres, ou “florestas anãs” que se estabelecem no solo rochoso, formando um ambiente aberto, pouco sombreado e de imensa variedade de espécies de plantas, muitas delas de uso medicinal, como macela, mangaba, pequi, ipê roxo, urucum, cagaita, maracujá do mato e o próprio algodão.
A região do Vale do Jequitinhonha se destaca pela diversidade natural e cultural, com suas paisagens surpreendentes e suas manifestações populares, como o congado, o canto das lavadeiras, as modas de viola e o artesanato. A tecelagem e a cerâmica produzidas no Vale do Jequitinhonha, de forma geral, são muito representativos da cultura singular da região. O encontro das diferentes tradições tecelãs africanas, indígenas e europeias, com suas técnicas e modos de fazer, proporcionou que se constituísse no Brasil uma tecelagem variada e única que dialoga com as condições ambientais de cada lugar.