Lourdes Aparecida Camargo de Lima
Lourdes é mestra na cerâmica tradicional da região do Alto Vale do Ribeira. Produz peças utilitárias e decorativas a partir de conhecimentos ancestrais herdados dos guaranis. Além de produzir, ela repassa seus conhecimentos e construiu uma rede de cooperação e solidariedade que só fortalece a manutenção desse saber-fazer tão antigo e valioso.
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Sobre as criações
A cerâmica tradicional da região do Alto Vale do Ribeira é produzida a partir de conhecimentos ancestrais herdados pelos povos indígenas guaranis, antigos ocupantes da região, com o uso da tradicional técnica do “rolinho” (rolete ou cordel) ainda usada para “tecer” o barro que modela peças utilitárias e decorativas de formatos únicos. Antes usada para a fabricação de panelas para cozimento, cuias d’água, reservatórios de alimentos e urnas funerárias, a cerâmica ganhou novos usos. É considerada uma das mais importantes manifestações da cultura popular no Brasil.
O modo de fazer foi preservado – vem sendo passado de mãe para filhas há quase dois séculos e permaneceu na tutela de antigas mestras até alguns anos atrás. O barro é extraído em um barreiro. Com cuidado retiram uma boa quantidade para poderem trabalhar por um longo período. Em seguida ele é preparado, socado manualmente no pilão para ganhar maciez e começar a receber os contornos das mãos habilidosas da artesã. Sem o uso de torno ou máquinas, a artesã modela a argila com as mãos, produzindo rolinhos de tamanhos e espessuras variados dependendo da dimensão da peça que se deseja. São sobrepostos de acordo com o formato do objeto a ser criado que, alisados com ajuda de utensílios caseiros, seguem para a secagem. Quando seco, chega o momento de imprimir a delicada pintura floral feita a partir do uso do próprio barro, seguindo a mesma paleta de cores das peças e inspiração dos antigos desenhos feitos pelas mestras. Por fim, seguem para o forno, para a queima.
Sobre quem cria
Lourdes Aparecida Camargo de Lima aprendeu a técnica com as antigas mestras há 17 anos atrás e desde então segue fiel como sua guardiã. Recebeu o conhecimento através das filhas de Custodia de Jesus da Cruz – Ivone, Zeli e Dulce já vinham abandonando a produção da cerâmica em 2003. Uma tradição guardada por mulheres agricultoras que mantinham o sonho de viver do artesanato e não deixá-lo morrer.
Lourdes sempre trabalhou na lavoura. O trabalho na roça era pesado e garantia renda apenas em parte do ano. A filha Josy era pequena e já acompanhava a mãe. Foi quando um projeto da APAE chegou ao município com um programa de erradicação do trabalho infantil, através do auto emprego. As crianças passaram a frequentar a escola, acompanhadas das mães, enquanto essas aprendiam um novo ofício. Foi dessa oportunidade que um grupo de mulheres fundou a associação de artesanato que permanece ativa até hoje, onde Lourdes e Josy são fundadoras e artesãs.
“São só seis meses de trabalho na roça e o resto é inverno. Agora a gente tem trabalho o ano todo. E o conhecimento. Mesmo que muita gente não trabalhe com isso, hoje muita gente conhece.”
Passadas quase duas décadas, Lourdes permanece agricultora e é hoje reconhecida com o título de mestra-artesã, pelo domínio e reconhecimento em seu ofício, legitimados pela comunidade que representa e pelo compromisso com a transmissão do saber e do fazer tradicional para as novas gerações. Sempre ensinou, levando sua arte a outros lugares. Pretende, duas vezes ao mês, receber pessoas para ensinar, formar um grupo de aprendizes.
“Porque uma hora que eu não estiver fazendo mais, isso vai continuar. Foi gratificante esse tempo de aprendiz. Assim como a gente aprendeu de outro lá, quando a gente era criança, é importante da gente passar o conhecimento para as pessoas mais novas, para a geração mais nova. Isso tem um valor cultural muito grande.”
Lourdes é convidada a participar de eventos, palestras, exposições, conta com apoio do Programa do Artesanato Brasileiro, da Sutaco (Subsecretaria do Trabalho Artesanal nas Comunidades), da prefeitura de Apiaí, do SESC, além dos vizinhos, aos quais ela chama de parceiros. Conta que “através do conhecimento, conheci outras culturas, fiz muitas amizades, intercambio, é como uma família: se um não esta bem todo munda fica preocupado. Estamos sempre trocando serviço e eles estão sempre chamando o caminhão pra me ajudar a pegar a argila ou a lenha.”
Realizou cursos e capacitações através de várias entidades e intercâmbio de conhecimentos com outros artesãos.
“A gente tinha uma ideia de um jeito, aí a gente foi abrindo o horizonte, conhecendo o mundo.”
Sobre o território
Apiaí é um município que integra o Alto Vale do Ribeira. Distante 320 km da cidade de São Paulo, é cercada por Mata Atlântica e permaneceu isolada à margem do desenvolvimento econômico do resto do estado até meado do século XX, o que permitiu preservar as técnicas ancestrais de seu artesanato, que seguiu fortemente presente no cotidiano das pessoas. Lourdes mora no bairro do Encapoeirado, que permanece sendo um local de conservação dessa arte que, segundo contam, foi local de escravos fugidos, o que reforça sua origem quilombola. Berço de Dona Custodia, uma das mais antigas e importantes mestras, de avós, bisavós e antepassados de Lourdes. “Aprendi com eles. Uma herança tupi guarani. Dai depois vieram os escravos, foram se misturando e foram fazendo essa mistura. Minha descendência é indígena. O bisavô da minha mãe foi pegado a laço no mato.”
A cerâmica de Apiaí reúne peças que foram criadas com a herança do passado, os aprendizados do presente e a esperança no futuro. Motivada pela vontade de manter a tradição e construir tempos melhores para sua comunidade rural, tirando o sustento do artesanato, Lourdes se fortalece para seguir em frente.