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Mestre Márcio dos Tambores


Márcio Bello dos Santos é mestre artesão, luthier e multiplicador do seu saber. Resgatou a produção de tambores ancestrais, sobretudo os tambores de barro, instrumental tradicional de origem africana.

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Sobre as criações

Instrumentos de percussão – os mais antigos instrumentos musicais, que remontam aos primórdios da civilização humana. Seu uso está relacionado a festas, celebrações religiosas e profanas, cerimônias fúnebres, danças e tantos outros eventos. Entre uma grande diversidade, o tambor de barro, de origem africana, é considerado o mais importante e original deles: um instrumento que antecede os instrumentos de membrana. Seu nome – Tambor Udu – tem origem no dialeto Ibo. Pertence ao sagrado feminino nigeriano, onde permanece sendo produzido e tocado apenas por mulheres. Trata-se de uma espécie de cânfora, botija, pote de argila feito à mão, adaptado pelos povos que habitam as proximidades dos rios nas regiões Central e Sudeste da Nigéria. Além da abertura superior presente em um jarro convencional, apresenta um orifício lateral com cerca de 4 centímetros de diâmetro, o mesmo princípio da ocarina. 

Através do orifício, com o uso da mão ou dedos, batendo alternadamente sobre diferentes pontos da superfície bojuda, é possível alcançar diferentes tons e volumes de som. Mantendo o orifício principal menos ou mais aberto com a palma da mão, enquanto se toca com a outra, também se modela a pressão do ar, alcançando um surpreendente vocabulário sonoro. 

Existem vários tamanhos e modelos de tambores udus, apesar de manterem o mesmo formato: caxambu e fuxico são usados junto a uma terceira variedade feita de tronco de madeira conhecida como roncador, puxa tripa ou tambor de rabo – original da Angola, ancestral da cuíca. São usados na Sussa ou Suça, que é uma dança e um batuque, ou um batuque com dança. A música vem sendo compreendida na história da humanidade como uma forma de celebração. A lavoura, à chuva, aos deuses. O ritmo é algo inerente e indispensável à vida. Tocar, fortalece e unifica o corpo, a mente e o espírito. Individualmente ou em grupo. 

Nesse sentido os tambores udus são tidos como “a voz dos ancestrais”. As caixas de folia, usadas na folia de reis ou folia do divino também fazem parte desse enredo percussivo. Desta vez uma tradição de origem religiosa, de matriz europeia, trazida ao Brasil por portugueses. Surgiu como instrumento de comunicação anunciando (já que possui vários toques) o “viageiro”, o toque das rosas, entre outros – um instrumento cerimonialista. Presente em quase todos os países na Europa e também usadas na guerra, tocadas pelas bandas. Por último os pandeiros da catira e da roda. 

Apesar do brasileiro ter se apropriado e desenvolvido uma técnica própria, seus primeiros registros ocorreram no Egito, onde eram, na época, em formato quadrado. Em Tocantins faz parte das produções dos catireiros onde há a peculiaridade de o usarem ao invés das palmas, sapateando e batendo pandeiros. Nas oficinas ministradas pelo Mestre Márcio dos Tambores, um dos principais mestres de ofício dessa arte percussiva, o material usado na confecção dos instrumentos não é adquirido por extração. Os artesãos coletam na área rural troncos de árvore caída, recebem doação de madeira apreendida e aproveitam laminados e compensado naval. Quanto ao barro, ao iniciar uma formação, Mestre Márcio faz questão de ensinar a pisar o barro – um processo primitivo mas valioso. “Depois eles pegam o barro já marombado em uma cerâmica parceira, uma fábrica de tijolo e telha da cidade que doa. Mas antes ensino os meninos a pisar o barro, a experimentarem o processo.” O couro vem em quantidade de um curtume com mais de cem anos, um negócio familiar em Recife.

“Penso em ensiná-los todo o processo, dar autonomia, até para quando eu não estiver aqui as coisas continuarem.”

Mestre Márcio dos Tambores

Marcio Bello Dos Santos – Mestre dos Tambores / Crédito das fotos: Divulgação

Sobre quem cria

Márcio Bello dos Santos é artesão desde os 12 anos de idade. Foi iniciado na arte de fazer fantasias de carnaval, junto a tia e a mãe, momento em que descobriu suas habilidades artesanais. Participava da preparação do carnaval, do bloco de rua e começou a confeccionar suas próprias fantasias. 

Aos poucos foi explorando outros materiais, tipologias, fazeres. Passou a mexer com couro e depois entalhe em madeira. Atuou com temas regionais, mais tarde com a criação de peças comerciais. Paralelo ao artesanato dedicava-se à música, envolvido com fanfarra e escola de samba. Aos 17 anos já trabalhava profissionalmente nas áreas de música e artesanato. 

Chegou ao Tocantins em 1990, na época um Estado recente, onde tudo era muito precário. Em Palmas trabalhou como cenógrafo na primeira emissora de TV, colaborando para dois programas sobre cultura popular. Foi conhecendo as pessoas ligadas às culturas tradicionais, dos interiores, as cidades mais antigas onde a cultura é muito presente e os músicos, os mestres e brincantes fabricam seus próprios instrumentos tradicionais para as manifestações da folia e do reisado com o uso de técnicas primitivas. 

Aos poucos, Márcio foi tocado por esse olhar que lhe habitava desde a infância – um afeto pela cultura tradicional – e foi percebendo que muita coisa estava se perdendo: “As pessoas falavam de muitos instrumentos que não existiam mais.” De 1992 a 2000 mergulhou em um trabalho de pesquisa e deu os primeiros passos no trajeto que ainda faria com os tambores. Fez o levantamento de todos os instrumentos tradicionais usados nas manifestações – materiais, técnicas, e assim chegou ao tambor de barro. As pessoas relatavam, mas ninguém sabia mais o modo de fazer. 

Foi através da Associação Comunitária e Cultural de Natividade (ASCCUNA), representada pela grande ativista da cultura nativitana Simone Camelo, que Márcio encontrou Dona Benvinda, que era a última artesã que detinha o saber. Já cega e com idade bastante avançada, através de seus relatos orais, “artesanalmente”, conduziu Márcio na confecção de vários exemplares. Sem a visão, ela percebia através do tato as correções que eram necessárias que ele executasse. Além de Tia Benvinda, outro mestre muito importante nesse processo foi Tio Irineu, exímio tamborzeiro, que ensinou as batidas, variações e sotaques do Ritmo Sussa. 

Dessa forma Márcio resgatou o modo de fazer o tambor de barro, uma conquista valiosa. Reunindo todas as pesquisas que havia realizado, iniciou, no ano de 2000, o projeto piloto de de arte-educação Tambores do Tocantins com jovens do campo.

“Aqueles eram os herdeiros naturais desse legado já que a maioria das manifestações populares acontece nos interiores, no campo.” 

Aconteceu com alunos da Escola Família Agrícola de Porto Nacional, mais tarde (em 2003), em Natividade, com outra vertente. Tinha como missão, além de fazê-los conhecer as manifestações, ensiná-los a confecção dos instrumentos mas também construírem os meios de produção. Apropriá-los de todo o processo: a coleta, a modelagem, à costura do couro.

“Durante o processo de formação na oficina de multiplicadores, eu contextualizo a história da origem dos instrumentos, sobre como será que o homem faz quando ele termina o instrumento que ele fez, que ele toca, e isso gera encantamento. Um processo e construção do pensamento. O jovem que inicia a oficina não tem ideia que o resultado do tambor vai ser tão significativo. Constrói um instrumento e depois vai fazer música com ele. Então quando ele entra no grupo e vai tocar, ele já está despertado.” 

Mestre Márcio dos Tambores

Márcio nunca mais parou. Segue em um processo contínuo, assim como as tradições. Vem, ano a ano, formando multiplicadores para atuarem com a formação de artesãos em tambores em vários locais do estado e fora: Pirenópolis, São Jorge, Alto Paraíso, Campo Grande, Corumbá (onde recebe crianças do Paraguai), entre outros. Todas as iniciativas que propõe resguardam a ideia de permanência – nunca inauguram um projeto com caráter efêmero. A todo momento em mutirão, de forma cooperativa. “Se faltar um ou outro faz diferença.” Sempre pensou no artesanato pelo viés da sustentabilidade. Para isso potencializa tudo que existe de possibilidade de receita. Fabricam instrumentos em miniatura (em tamanho reduzido porém iguais aos originais, inclusive o som), souvenirs, além das atividades musicais que oferecem. 

A iniciativa de arte-educação, com formação na área de artesanato e música, é também pensada para oferecer uma possibilidade de renda. “Mostrar aos meninos que poderiam sobreviver dessas atividades, ao mesmo tempo em como preservar essas tradições.”

São muitos os mestre que contabiliza – e honra – ao longo da vida, começando pelo avô, Seu Osmar Bello com quem obteve o domínio das ferramentas. Também Mestre Altamir Capixaba, que conheceu em Rondônia quando começou a entalhar em madeira, Dino, de origem chilena que dividiu muitos aprendizados e ferramentas quando Márcio começou a experimentar o couro. 

Em Tocantins, tia Benvinda, responsável pelos relatos, o permitiram resgatar o modo de fazer o tambor de barro. Também Mestre Tio Irineu, Mestre Dió, Patrício e Belarmino, catireiros minucioso que fazia os testes de qualidade dos instrumentos. Bila Reis (falecido em 2019), um dos precursores do projeto Axé e Oludum, que o acolheu na Oficina de Investigação Musical em Salvador por cerca de 5 anos, proporcionando aulas que só eram lecionadas lá como o xequerê, trocando o pagamento das aulas pelo intercâmbio de conhecimento. Além disso fez cursos em Salvador e visitou muitos museus para pesquisar, estudar e aprender por exemplo sobre como fazer alguns tipos de amarração. 

Todos foram fundamentais nas pesquisas, sempre indicando lugares onde Márcio poderia encontrar mais informações. Hoje leva para o mundo nossa cultura popular através dos clientes e dos inúmeros eventos que participa como o Ano do Brasil na França em 2005, a viagem a Noruega e Itália em 2007, o intercâmbio em educação musical em Londres em 2010 pelo trabalho que vem desenvolvendo na confecção de objetos. “Todas as vezes levei instrumentos para comercializar, vendi lá três vezes mais lá do que venderia aqui e achavam barato”.

Além do imenso desafio que a pandemia trouxe, também proporcionou aprendizados e novos projetos. Pretendem lançar em 2021 uma plataforma de ensino a distância junto a um parceiro para continuarem usando a internet como ferramenta de multiplicação, mas de forma mais organizada – o que torna o projeto ainda mais abrangente e alcança mais localidades. Uma experiência nova para eles. “A coisa de entrar no mundo virtual é sem volta, foi muito abrangente e pensamos: Porque a gente não estava usando isso antes?“

Marcio Bello Dos Santos – Mestre dos Tambores / Crédito das fotos: Divulgação

Sobre o território

Nascido e criado em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Mestre Márcio dos Tambores mudou-se para Tocantins aos 24 anos. Um Estado ainda novo, com apenas 32 anos, mas com muita história. Formado pelo território onde se localizava o antigo norte de Goiás, é repleto de cidades fundadas no período do ciclo do ouro, época das Entradas e das Bandeiras.

Terra que marca o legado da escravidão nos séculos XVII e XVIII quando os bandeirantes abriram as primeiras minas de ouro e trouxeram, vindos do Sudão e Nigéria, um grupo de 40 mil pessoas escravizadas. Vindos direto da África, sem ocorrências de miscigenação com índios ou outros grupos, deixaram essa herança ancestral africana tão legítima.

“Em Tocantins, quase 70% da população é de afrodescendentes. E essa carga cultural africana está preservada. Na culinária, no artesanato, no modo de viver. Já ouviu muitos mestres falarem de coisas que na África não existem mais. Os tambores é uma delas e os ritmos também. Tenho consciência do valor que isso tem.”

Mestre Márcio dos Tambores

Com licenciatura em musica pela Universidade de Brasília, Mestre Márcio sempre foi autodidata. Sem oficinas ou cursos, aprendeu sobre as ferramentas com o avô, se interessou pelo couro, comprou as tesouras. Sempre foi um aprendiz atento. Principalmente em relação ao mercado. Foi aprendendo na prática, indo para as feiras, fazendo, lendo, experimentando, levando prejuízo, acertando.

“Eu transformo tudo em trampolim”

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