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Sobre as criações
A renda de bilro ancora no Brasil na época da colonização trazida por mulheres portuguesas. Foi incorporada culturalmente e difundida nos nossos sertões e litorais. O ofício secular, hoje ameaçado, se perpetua em mãos insistentes que mesmo com severas adversidades perseveram. Uma luta árdua, e lenta, como o próprio feitio da renda. Para tecer, são necessários almofada (acomodada em um cavalete e forrada com chita), bilros, desenhos, espinhos de mandacaru, linha, disciplina, paixão e muita paciência. Afinal, como tudo que é feito a mão, não há de se exigir pressa para que a renda se conclua. Caminhos de mesas, blusas e xales são alguns dos frutos desse trabalho tecido em pontos embebidos em memória afetiva: alegria do pobre (renda fina e barata), orelha de burro, margarida, palha de coqueiro, olho de pombo, pata de siri, acode precisão, mão de calango, dente de cão, e os populares baratinha e traça.
Sobre quem cria
Raimunda Lúcia Lopes aprendeu o ofício com a mãe, aos 7 anos, um costume naquela época, quando mãozinhas miúdas manejavam bilros inquietos perpetuado a apurada tradição que mães legavam às filhas.
“Era uma rendinha bem fácil, bem estreitinha. A gente chegava da escola, mãe dava uma tarefa pra nós e dizia que a gente só ia levantar pra sair, brincar ou ajudar na casa depois da tarefa da renda. Então de tarde a gente ia fazer a rendinha. Fazia até 10 metros. A mãe então cortava e a gente começava outra. Ela colocava em uma caixa, e quando chegava o fim do ano mandava pra uma tia em Fortaleza vender para a gente comprar o vestido de fim de ano.”
Raimunda pertence a uma família de dezesseis filhos, quinze de sangue, seis mulheres. Criadas na almofada, “rendando” a tarefa da tarde. Nenhuma, exceto ela, se enamorou pelo feitio. Acometida por uma paralisia infantil aos 3 anos de idade, não permitiu que o acaso rascunhasse seus caminhos. Mesmo com a mobilidade comprometida, se manteve caminhando e ativa. Aos 8 anos aprendeu sozinha a costurar e bordar – e jamais abandonou o ponto cruz. Aos 10 anos já era professora. A deficiência não lhe paralisou. Mudaram-se para Fortaleza, para continuar os estudos, onde um ortopedista se dispôs a operá-la. Aos 22 anos, a recuperação exigiu 6 meses engessada sobre uma cama, fisioterapia, e então a melhora de cerca de 40% em sua mobilidade.
Ao retornar, diante de tantos alunos carentes na terra natal, sem escola, montou uma em sua própria casa. Com uma “latada de palha” embaixo de um cajueiro, fez ensinar. Logo estava lecionando pelo município no ensino fundamental. Foi preciso um diploma em pedagogia e então Raimunda passou a acordar às 4h da manhã, durante dois anos, e viajar para Itapipoca duas vezes por semana. Por fim, estava diplomada pelo Instituto de Estudos e Pesquisas do Vale do Acaraú. Também foi agente comunitária e agente pastoral. Por onde fosse levava uma mala cheia de renda, sempre voltava vazia.
Vendo as rendeiras em permanente dificuldade, trocando renda no povoado vizinho por açúcar, sabão e fumo, sem o dinheiro da matéria prima para a próxima produção, foi atrás de apoio. E no pequeno grupo de mulheres deu início ao projeto que passou a reunir 100 rendeiras. Formalizaram-se e totalizam hoje 45 mulheres.
Professora, artesã e agricultora, Raimunda tem na alma a resistência sertaneja. Na falta de apoio para participar de eventos de comercialização, pegou as muletas, amarrou na mala e saiu arrastando. Em 2010 Raimunda se aposentou por tempo de serviço e em 2011 recebeu o titulo de Mestra do Oficio da Renda de Bilro. Em 2016 foi diplomada pelo governo do estado do Ceará com o título Notório Saber em Cultura Popular através da lei que registra os Tesouros Vivos da Cultura do Estado do Ceará, honraria conferida a apenas três rendeiras de bilro no estado.
“Tem uma coisa que eu quero resgatar. A cultura da linha fina, o artesanato da renda de bilro original e o trabalho coletivo, em grupo. Essa produção individual, competitiva, onde uma rendeira quer vender mais barato que a outra para vender mais, não é boa.”
Sobre o território
Raimunda sempre soube que seu lugar é o Trairi, município de Timbaúba, no distrito de Canaan, sua terra natal. Surgiu como uma aldeia em 1608, com a chegada dos índios Pitiguaras às margens do rio Trairi e assim se manteve até o final do século XVII, com a chegada dos portugueses.
Abrigado na costa oeste do estado, reúne uma faixa de praia, dunas e uma enorme área que concentra a base da economia agropecuária local. Ao sul, o sertão. Compartilha na divisa, com Itapipoca, a Área de Proteção Ambiental do Rio Mundaú, unidade de conservação com enorme valor biológico e natural fragilidade do equilíbrio ecológico, em permanente risco face às intervenções humanas. Os principais problemas são gerados pela especulação imobiliária – e as casas de veraneio, além de desmatamentos, queimadas, caça e pesca predatória e um dos mais recentes: a implantação, em 2013, do Parque Eólico do Trairi.
“Nosso Trairi está cheio de torres de energia eólica.”
Não é difícil imaginar o enorme impacto que todo o bioma vem sofrendo. E diante do atual cenário de escassez do mandacaru, planta típica, que sempre forneceram os espinhos que delimitam os contornos da renda, Raimunda partiu para a ação. Por iniciativa própria, as artesãs decidiram que cada rendeira deve plantar um pé de espinho em sua própria casa para garantir a continuidade da planta. Dessa forma, também a da renda, e sua tradição.
“A renda ela nos ensina muita coisa: a gente canta, a gente reza e a gente ainda produz musica”