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Goiabeiras – Espírito Santo


Goiabeiras é um bairro do município de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, conhecido como território da panela de barro.

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R. das Paneleiras, 55., CEP 29075-053, Vitória – ES

Fotos da produção das panelas de barro no bairro das Goiabeiras, Vitória – ES. / Crédito das fotos: Divulgação Artesol

O Território

Goiabeiras é um bairro do município de Vitória, capital do estado do Espírito Santo, conhecido como território da panela de barro. No início do século XX, o território pertencia aos fazendeiros produtores do gado de corte e leite que abasteciam os mercados de Vitória, Vila Velha, Cariacica e Santa Leopoldina. Apenas em 1942 Goiabeiras passou a pertencer a Vitória – ES.

O desenvolvimento do território foi lento e seu crescimento se iniciou com a chegada das companhias aéreas no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, com aeronaves de grande porte. O campo de aviação que já existia na região desde 1930 foi equipado com  um gerador de luz para a pista. O empreendimento, em consequência, beneficiou a população local com a iluminação de suas casas. Trouxe o progresso para região e o aumento da população, pois os funcionários das companhias passaram a residir no entorno da Goiabeira Velha. A construção do aeroporto foi extremamente importante para o desenvolvimento local.

Antes da chegada das companhias aéreas, moradores afirmavam que no bairro a atividade pesqueira era intensa que se estendia até os mangues e Camburi. Também surgiu a história de que a receita da moqueca capixaba foi criada em Goiabeiras, além da tradição das panelas de barro, herança indígenas de mais de 400 anos, antes da chegada dos portugueses ao território de Vitória. Essas terras pertenciam aos goitacás (procedentes do sul), aimorés (procedentes do interior) e tupiniquins (procedentes do norte, onde fica Goiabeiras). E no alto conhecido como Morro Boa Vista e nas proximidades do aeroporto de Goiabeiras foram encontrados um sítio arqueológico com artefatos de cerâmica, vestígio de uma ocupação indígena.

A produção das panelas de barro é reconhecida como uma atividade econômica culturalmente enraizada na Goiabeiras Velha, na parte norte do Município de Vitória, à beira do canal que banha o manguezal e circunda a Ilha.

Como nasce um polo criativo?

Podemos afirmar que o fazer criativo das panelas de Goiabeiras é passado oralmente entre gerações. A mãe paneleira ensina suas filhas, suas sobrinhas e suas netas, até que venha outra geração e assim vai seguindo.

“Eu comecei a fazer fazendo o quê? Panelinha pequenininha, panelinha para poder brincar, porque nós não tínhamos condições de comprar brinquedo. […] Aí um dia, um comprador chegou aqui, e minhas panelas feia, torta, mas ele achou a coisa mais linda! Aí ele comprou o que eu tinha feito tudinho… foi o que me incentivou mais ainda! Se comprou, é porque eu tô sabendo fazer. Me incentivou, e aí eu mergulhei de cabeça em fazer a panela de barro. Mas a panela de barro o sangue já corre na veia. A gente já nasceu com a mãe fazendo, a vó e o pai tirando barro. Meu pai faleceu lá dentro do vale [do Mulembá] retirando barro.” 

(Dona Berenícia Corrêa do Nascimento)

No bairro de Goiabeiras, encontram-se predominantemente mulheres que há mais de quatro séculos praticam o mesmo modo de fazer panelas de barro pretas, mantendo uma tradição da cultura indígena. Essas mulheres ficaram conhecidas como as Paneleiras de Goiabeiras, tendo como prática a produção de panelas desde as antigas ocupações de Goiabeiras, dando continuidade ao seus ancestrais e fazendo parte da construção sócio-histórica da região. A tradição da panela de barro é construída a partir da ocupação geográfica e a passagem desse conhecimento entre gerações, tornando-se sustentação de uma unidade territorial e a história da tradição como manifestação cultural.

Arqueólogos consideram que a técnica utilizada vem da ancestralidade indígena do Tupi-guarani e Uma. Há vestígio da ocupação de populações pré-indígenas ceramistas Uma, com 2.500 anos, o que confirma a uma tradição milenar, apesar de que as paneleiras afirmam ser uma tradição de mais de 400 anos. Porém, apesar da colonização portuguesa e a chegada dos africanos escravizados, observa poucas modificações na prática de fazer ao modo dos indígenas.

Sobre o modo de fazer das paneleiras, a produção está ligada à natureza: o barro como matéria-prima, a água para modelagem (hidratando o barro), o mangue onde encontra o tanino que serve para tingir e impermeabilizar as panelas, o ar para secagem e o fogo para queimar e se transformar em cerâmica. Esse ciclo é sustentado compreendo que é necessário o controle da extração do barro e do tanino para manter o equilíbrio com a natureza. Há uma divisão de função para a produção da panela, uma coleta o barro e prepara para a modelagem, outra modela a panela e assim vai para a etapa de alisar e queimar que geralmente são paneleiras diferentes. Após a queima, uma vassourinha de muxinga molhada no tanino do mangue é aplicada na peça ainda quente.

Nas falas dos paneleiros e paneleiras, o barreiro tem vários significados: retrata um local de trabalho, lazer e coletividade, que se mistura com a história pessoal.  A retirada é feita no Vale do Mulembá, e o barro possui características singulares encontradas somente na região. Nas suas narrativas, o manguezal remete aos momentos de diversão e também ao trabalho, matéria-prima e renda:

“A importância [do barreiro e do manguezal] para nós é tudo de bom, por quê? Se não tiver o barro, a gente não faz panela, não trabalha; e se não tiver a tinta, o mangue também é importante, se não tiver a tinta, como que nós vamos fazer a panela, pra pintar a panela? Porque a tradição dela é essa cor preta”. 

(Eonete Alves Corrêa, Paneleira, 63 anos, 2016).

O surgimento da produção das panelas de barro de Goiabeiras data de mais de 400 anos. Sua existência é contínua devido a necessidade do objeto utilitário para o dia a dia na prática culinária. Com caráter funcional, em seu designer há alças adaptadas para o uso das panelas nos fogões.

Panelas de barro produzidas pela Associação das Paneleiras de Goiabeiras / Crédito das fotos: Divulgação Artesol.

Como se mantém um processo criativo?

As paneleiras de Goiabeiras, por sua maneira de produzir a cerâmica tão singular, conquistaram o título de patrimônio cultural brasileiro, tornando-se o primeiro grupo brasileiro a receber o registro de patrimônio cultural imaterial do IPHAN em 2002. Trazendo para elas o reconhecimento e ações públicas do Estado e do município, contribuiu na preservação da prática cultural de fazer a panela de barro, especificando o seu artesanato de tradição indígena.

Em 1987, a Associação das Paneleiras de Goiabeiras (APG) foi criada, trazendo ainda mais visibilidade e um local fixo para produção, além de ser turístico. Considera-se que foi uma conquista o Galpão das Paneleiras (sede da associação), pois valorizou e melhorou as condições das paneleiras. Diariamente, dezenas de famílias se reúnem para confeccionar panelas e conquistar sua renda financeira. Antes da associação, as paneleiras trabalhavam nos quintais de suas casas e comercializavam no mesmo local. Outra mudança atual são os homens inseridos na produção: a maioria deles é responsável pela retirada do barro e do tanino do barreiro e do manguezal.

“Tivemos a orientação da… Do manguezal, como não destruir; nós tivemos palestras! Antigamente o casqueiro [pessoa paga para retirar a casca do mangue-vermelho] ia lá em cima e descascava o pé de mangue todo (…). Aquela árvore ali já não vivia (…). Então, aí o… Meio ambiente [IBAMA] veio e fez uma palestra com a gente… Vai conservar. Qual é a importância, não desmatando tudo, mas sim 50%”. (E. C. M., Paneleira, 50 anos, 2016)

Para as Paneleiras de Goiabeiras, o sentido de pertencimento é coletivo, pois por esse trabalho foram reconhecidas, ocupando um papel de produtoras do objeto símbolo da cultura capixaba: as panelas de Goiabeiras. As paneleiras sustentam sua tradição se legitimando culturalmente enquanto grupo. E assim, como símbolo da tradição, a persistência da técnica vai passando de geração e se associando a outros elementos da cultura capixaba, como o congo, jongo e as festas religiosas, atraindo o turismo para o Estado.

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